quarta-feira, 14 de abril de 2010

Travessia

“Há tempo que é preciso abandonar as roupas usadas que já têm a forma do nosso corpo.E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares.É o tempo da travessia.E se não ousarmos fazê-la teremos ficado para sempre à margem de nós mesmos” Fernando Pessoa

Ontem o vi no enterro
Estava sóbrio elegantemente vestido
Transparecendo um ligeiro ar de frieza

Entrou
Sentou-se
Parou horas a velar o corpo ali estático

A multidão que se empurrava na sala
Parecia não ser empecilho a visão dele
Talvez, olha-se sem os olhos

A sala repleta de murmúrios silenciou
ao vê-lo levantar-se
A aba do chapéu propositalmente baixa
escondia-lhe os olhos,
deixando a mostra apenas a boca,
a qual estava sem nenhum rascunho de sorriso
Sacou de sua roupa um punhal
causando um estardalhaço entre os presentes
O ar parecia ter fugido de todos

Então se dirigiu ao corpo
retirou o chapéu,salvaguarda de suas feições,
ergueu o punhal na altura de sua testa
e de um único golpe
abriu um talho em toda extensão de seu rosto

Alguns já haviam desmaiado nessa altura dos acontecimentos
e outros insistiam em acompanhar tudo apáticos

Ergueu suas mãos,
colocando-as no corte recentemente feito
e separou as partes, puxando-as desde o topo

Seu novo terno era lindo,
um leve tom de azul, tinha algo de celestial
imperceptível ao leitor distraído
Os olhos readquiriam o sorriso habitual
e o chapéu já não os cobria

Pegou o seu antigo ser
Realinhou-lhe as feições, que agora sorriam
E o colocou junto ao corpo velado


VARCELLY

ps: TRAVESSIA II

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